A mídia física, a materialização e a saudade

É muito complicado explicar o colecionismo. Há uma linha muito tênue entre o colecionador e o acumulador, e a sociedade pode não ver com bons olhos o ato de guardar para si itens que, em sua maioria, já estão obsoletos ou ultrapassados.

De acordo com a Wikipédia:

O colecionismo é a prática que as pessoas têm de guardar, organizar, selecionar, trocar e expor diversos itens por categoria, em função de seus interesses pessoais. Em todo o mundo, milhões de colecionadores organizam as mais diversas coleções de objetos.

Todo mundo já colecionou alguma coisa, mesmo sem querer. Na infância, foram brinquedos, Tazos, carrinhos da Hot-Wheels; na adolescência, cartas de Pokémon, pôsteres, notas abaixo da média; e na fase adulta, todas as anteriores e mais um pouco, como livros, roupas, utensílios domésticos, etc.

Eu comecei a colecionar desde cedo. Comprava jogos piratas de PlayStation 2 e, nas inacreditáveis promoções de 3 jogos por R$ 10,00, ia acumulando além do necessário. Eram outros tempos. O acesso à internet era precário, mas nós éramos muito felizes com jogos embalados em saquinhos de plástico, encarte em papel sulfite e procedência completamente duvidosa. A gente sabia o que estava comprando. Foram poucas as crianças no Brasil que conheceram um jogo original de PlayStation 2 na época. Eu mesmo só fui conhecer um em 2020: era um Dark Cloud japonês, comprado em um evento de videogames retrô aqui da região, e custou 50 reais.

O mundo evoluiu, a tecnologia evoluiu. Temos uma internet rápida o suficiente para carregar qualquer conteúdo em instantes, servidores dedicados com armazenamento e estrutura para suportar todo tipo de tráfego, seja no Brasil ou no mundo inteiro. Por que ainda insistimos nas obsoletas mídias físicas, que ocupam espaço e acumulam poeira nas prateleiras e estantes?

A resposta é: Depende.

Essa resposta varia de acordo com os princípios de cada colecionador. Quando eu estava começando, não pensava muito nisso; apenas colecionava coisas que me interessavam de algum modo ou que fizeram parte de algum período da minha vida e que eu gostaria de ter novamente. Hoje, refletindo melhor, tenho a resposta que explica o principal motivo da minha coleção.

Materialização

Com a ascensão dos serviços de streaming, tanto de música, como o Spotify, quanto de vídeo, como o Netflix e outros, temos uma praticidade como nunca antes. É uma verdadeira biblioteca de Alexandria, um acervo enorme, só à espera do seu clique. São tantas opções disponíveis que é até difícil escolher alguma coisa — o tal do paradoxo da escolha, de Barry Schwartz. Com tantas opções assim, nada é tão importante; tudo é temporal. A maior parte dos lançamentos é esquecida em menos de um mês, simplesmente por estarem presos exclusivamente em pixels.

A materialização da mídia ocorre quando ela transcende a “telinha” e passa para o mundo real, assim como era antigamente, quando era possível tocar em um filme ou em um álbum. Apenas o ato do toque já eleva a importância de qualquer obra. Sim, existe diferença entre assistir/ouvir e tocar.

Lembro de quando era pirralho e passava um bom tempo na locadora só para escolher o filme que ia acompanhar o final de semana. Na época, também tinha um aparelho de som que comportava até 5 CDs, mas eu só tinha 1: O Rappa – Perfil. Conheço esse CD de cima a baixo, todas as letras.

A diferença entre ouvir um álbum em uma plataforma de streaming e tocar e reproduzir um CD está nesses detalhes: na caixinha de acrílico, no encarte, em um disco contendo exatamente e somente as músicas do álbum, sem recomendações adicionais de algoritmos que provavelmente já sabem até quantos banheiros você tem em casa.

No vinil, então, a experiência é ainda mais especial. Na forma mais analógica de música que existe, uma agulha que produz som, onde é possível até ver as formas de onda se olhar bem de perto. Essa magia simplesmente não existe atrás de um aplicativo.

Nesta foto, estou ouvindo o álbum “Around The Fur” do Deftones

Nesta foto, estou tocando o álbum “Around The Fur” do Deftones

Nesta foto, estou ouvindo o álbum “Clube da Esquina 2” do Milton Nascimento

Nesta foto, estou tocando o álbum “Clube da Esquina 2” do Milton Nascimento

Mas não se engane. Não vá pensando que eu saio na rua todos os dias com um Discman e 5 CDs para ouvir. Eu também assino o Spotify e a Netflix e não trocaria a praticidade deles no dia a dia. Porém, todas as obras que tenho em mídia física têm um lugarzinho especial, único, que nenhum streaming pode preencher.

Não leve isso tão a sério. Colecione do seu jeito, da sua maneira. O que trouxe aqui foi apenas uma das minhas motivações para continuar colecionando. A mídia física me trouxe muita bagagem, muita cultura, e garimpar é muito relaxante. Meu único conselho é: tome cuidado com algoritmos, principalmente na era do scroll infinito. Consuma conteúdos de vários lugares, estoure sua bolha, descubra novos artistas, novos filmes, novos livros e, acima de tudo, divirta-se.

Até mais!

Ernesto J.


PS: Um trecho muito coerente da Wikipédia que acabei não comentando no texto:

Dentre os benefícios que a atividade pode trazer para o colecionador, em especial os mais jovens, está o desenvolvimento dos sensos de classificação e organização, de interação e socialização com outros colecionadores, do poder de negociação, bem como o aumento do repertório cultural acerca do objeto colecionado.

PS²: O título foi diretamente inspirado no disco “Música Serve Pra Isso (1990)” dos “Os Mulheres Negras”, projeto do André Abujamra e do Maurício Pereira, uma maluquice 100% brasileira, escutem esse disco inteiro, sério!


Descubra mais sobre a ANEXOS

Assine para receber os conteúdos mais recentes por e-mail.


Comentários

  1. […] acompanhou meu último post falando sobre coleções, viu sobre “O Rappa – Perfil (2009)”, o único CD que tive por um bom tempo na […]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

×